segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Notas da diretora

A nascente poética de Massimo Bavastro brota das páginas do Dom Quixote de Cervantes, divaga por episódios e capítulos do romance e deságua, com uma tão clamorosa quanto vã catarse, lá onde Cervantes não quis levar os seus heróis: diante do mar. Onde termina a peregrinação dos nossos personagens, da raça de quem fica no cais – sem mais estrada, sem mais inimigos, sem esperança, sem embarque, sem fim.
Cavalheiros errantes também, como Dom Quixote e Sancho Pança em terra-firme, os nossos são náufragos nos labirintos da consciência. Viúvos de Cervantes e arrancados de sua época, batem-se contra fantasmas de uma vida inteira, derrubam camas de hospitais, elevam blasfêmias em igrejas, namoram bonecas infláveis e acabam por masturbar-se e jogar seu sêmen ao mar. Marginais, malucos, prófugos, excluídos que nunca fizeram parte, atravessam uma cidade de portas fechadas, sem entrada e sem saída.
Mesmo desejosos de uma destinação, seu vagar é um destino: irreparável, circular. Talvez nunca saiam do lugar e seja a cidade que rodopia na mente deles, marcando estações de uma via crucis muito profana: em fuga do suplício, em busca do gozo.
O seu vagar evoca hoje o delírio, como dimensão do ser humano em que a imaginação é fuga de um cotidiano aviltante e feroz. A loucura dos nossos dois personagens é pouca coisa diante da monstruosa loucura do mundo que percebemos ameaçá-los. No engenhoso engano da mente tem mais “verdade” do que no real – manipulado pelos dragões que a razão constrói, como máquinas escavadeiras, enfermeiras, telefones, bulas de remédios, psiquiatras, agulhas e mesas voando pelo ar.
São cordeiros entre lobos. Pureza crucificada.
A fuga mental (teatral) dos nossos dois cria um interstício, um espelho para o infinito: dois loucos que se acham – e são – os personagens de Cervantes, dois personagens que sabem sê-lo. A consciência disso é trágica e cômica. Tudo já está escrito, como em Beckett, em Borges e na Bíblia. Qualquer rebelião é grotesca. Qualquer heroísmo é ridículo. Por isso, seu padecer nos dói também. Seu desesperado desejo, sua melancólica fome, seu afeto nos comove. Apaixonamo-nos por eles.
Talvez nenhum de nós, seres humanos, seja feito para navegar os mares da plena liberdade.
Talvez sejamos, como eles, destinados a ficar no cais.

Alessandra Vannucci